sábado, 24 de janeiro de 2009

Inverteram a última tese de Marx sobre Feuerbach (24/01)

O ministro Tarso Genro diagnosticou outro dia na Folha de S.Paulo (Fala D'Alema) a anemia orgânica e intelectual da esquerda diante da crise econômica planetária. O diagnóstico foi certeiro. Os críticos do liberalismo e do imperialismo ("globalização") não poderiam sonhar com um cenário mais favorável: a desregulamentação do capitalismo e a atrofia do Estado não conduziram a humanidade ao paraíso prometido nos anos todos em que a liberdade do capital foi entronizada como dogma número zero da civilização. Entretanto, apesar das excepcionais condições objetivas, faltam as subjetivas. A esquerda parece contentar-se com o prazer de ver o adversário intelectualmente na lona. Satisfaz-se com o "eu bem que avisei". Propostas? Alternativas? Só nos limites do keynesianismo. O sujeito se levanta, incha a veia do pescoço, proclama a crise do "neoliberalismo" e da "globalização" e apresenta sua plataforma revolucionária: aumentar o investimento público. Parece pouco? É pouco. E isso quando a fórmula não vem acompanhada da liberalíssima "necessidade imperiosa de reduzir impostos". Daí que pessoas com ambições políticas e intelectuais além da média -como é o caso do ministro Tarso Genro- possam estar frustradas. Aliás, a crítica dele fez-me lembrar da décima-primeira e última tese de Karl Marx sobre Ludwig Feuerbach (o da foto). A tese é de Marx, mas quem a incluiu nas obras do filósofo alemão foi seu parceiro, Friedrich Engels:
    Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes; a questão, porém, é transformá-lo [o mundo].
O que mais se vê hoje em dia é gente usando o brochinho do teutônico mas tocando a vida como se a tese tivesse sido escrita ao contrário. Antes, tratava-se de transformar o mundo. Agora, diante da suposta impossibilidade de mudar o mundo, o prazer está em interpretá-lo. Daí a satisfação em poder dizer o "eu não disse?". Clique aqui para conhecer essa e as demais teses de Marx sobre Feuerbach. Por que eu falo sobre a "impossibilidade" de mudar o mundo? O PT travou ao longo de anos uma feroz luta política em torno da reforma agrária. Sempre ressaltou que a concentração da propriedade fundiária no Brasil era um dos pilares da nossa cruel (falta de) distribuição de renda. Quando o PT estava na oposição, atacava sistematicamente os governos por distribuírem pouca terra, ajudando a perpetuar o latifúndio. Bem, o PT chegou ao governo e sua política agrária em nada difere do que vinha sendo feito antes. Distribui uma terrinha aqui e ali, enquanto promove a renegociação amiga das dívidas dos grandes proprietários rurais e é sócio da modernização conservadora, cujo exemplo mais emblemático é a indústria do etanol de cana-de-açúcar. Eu conheço esse pessoal há mais de trinta anos, e sei desde lá atrás que eles não dão a mínima para a reforma agrária. Que sempre a consideraram uma reivindicação pequeno-burguesa, superada historicamente pelo avanço do capitalismo no campo brasileiro, em parceria com a grande propriedade (via prussiana). Daí que eu não tenha me decepcionado, como se decepcionou por exemplo o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST):
    "O presidente [Luiz Inácio] Lula [da Silva] diz por aí que ele é um aliado dos sem-terra. E também que é aliado dos latifundiários e do agronegócio. Então ele não é amigo de ninguém, ele é amigo dele mesmo. Ele não é nosso inimigo, mas também não é nosso amigo. Nós não convidamos o governo Lula para nossa festa porque vamos evitar constrangimentos."
A declaração é de João Paulo Rodrigues, da liderança nacional do MST. A festa de que ele fala? O Encontro Nacional da organização camponesa. Pois é, o radicalismo "socialista" dos críticos da reforma agrária nos anos 70 do século passado acabou nisto: na sociedade com o latifúndio capitalista. Ainda sobre a reforma agrária, é sintomático que o ministro de Lula mais preocupado com o assunto não seja nenhum petista, mas Roberto Mangabeira Unger. Que parece conhecer a importância de expandir a fronteira agrícola e ocupar os limites do Brasil com base na agricultura familiar. Escrevo aqui sobre a reforma agrária, mas poderia escrever sobre os bancos. Sobre a impotência governamental diante do oligopólio financeiro e da drenagem que o cartel promove na riqueza nacional. Ou poderia escrever sobre o contraste entre as declarações bombásticas de soberania e a submissão às pressões internacionais pela demarcação irracional de terras indígenas em área de fronteira. Ou sobre a ausência de uma reforma urbana. Quase uma década de governo petista terá se passado sem que o país progrida na democratização da propriedade nas cidades. Vejam que, exceto a demarcação das terras indígenas (assunto em que o ministro Tarso e eu temos posições bastante diferentes), são todos assuntos da agenda do PT na oposição. Eu faço este blog desde meados de 2005, quando voltei ao jornalismo depois de mais de uma década de "exílio interno". Sempre escrevi aqui que Lula faz um bom governo. Mas para a biografia dos protagonistas talvez seja insuficiente. Daí que de vez em quando certos assuntos saltem para a agenda, como que saídos do nada. É o caso do caso Cesare Battisti. Outro exemplo é o desejo recorrente de reinterpretar o alcance da Lei de Anistia. As coisas se passam como se de tempos em tempos, por espasmos, o presente se esforçasse para encontrar algum elo com o passado, para desesperadamente agarrar a mão do acrobata que balança no trampolim acima. Mas esse esforço de "coerência" só é visto em assuntos laterais. Ainda que úteis, nas circunstâncias. O governo Lula agora investiu mais de R$ 70 milhões no Fórum Social Mundial que acontece em Belém do Pará. O governo Lula nada tem a apresentar ali em assuntos como a reforma agrária, a reforma urbana ou o controle do sistema financeiro. Então, vai falar da punição aos torturadores e do refúgio concedido a Cesare Battisti. Ou, talvez, de como a aliança com o fundamentalismo religioso pode ser um caminho para o socialismo -por representar, quem sabe?, o elo mais fraco na cadeia imperialista. Não deixa de ser uma saída. Momentânea, mas certamente uma saída. Especialmente para quem se especializou em ler ao contrário a última tese de Marx (ou de Engels) sobre Feuerbach.

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sexta-feira, 4 de maio de 2007

A "tarefa difícil" de Lula e uma inevitável lembrança do Sr. Frias (04/05)

Eu tenho a minha pergunta pronta para a primeira entrevista coletiva de Luiz Inácio Lula da Silva neste segundo mandato. É o cúmulo do governismo: mesmo antes de marcada a entrevista, o pessoal do Palácio do Planalto já vai saber pelo menos uma das questões com que o presidente terá que lidar (se eu for sorteado, é claro). A minha pergunta:

- Presidente, o senhor tem afirmado que a expansão territorial da cana para a produção de álcool combustível não afetará a produção de alimentos nem vai acelerar o desmatamento, pois o Brasil tem terras em quantidade, inclusive degradadas. Mas, presidente, se existe abundância de terras para plantar cana e produzir álcool, por que o senhor vive dizendo que um dos limites para uma reforma agrária mais ampla é o preço da terra? Como é que a terra pode estar cara se há excesso de oferta, presidente?

Minha dúvida não é novidade para quem lê este blog. Eu vivo repetindo a questão aqui, mas ninguém do governo se digna a responder. Por isso é que eu quero ser sorteado para fazer uma pergunta ao presidente na entrevista coletiva. Para que ele tenha a oportunidade de responder em rede nacional de televisão. E, quanto mais demorar a acontecer (a entrevista), mais tempo eu terei para aperfeiçoar a indagação. Ontem, por exemplo, o presidente afirmou em Uberaba (MG), na abertura da ExpoZebu 2007:

- A questão da reforma agrária é uma coisa que me inquieta. Primeiro, porque a gente nunca vai conseguir fazer do tamanho que as pessoas precisam e querem que a gente faça. Segundo, o governo nunca tem dinheiro para compatibilizar a compra da terra com a exigência para fazer com que a terra produza o necessário, para que aquele companheiro que teve a terra possa se transformar em um produtor que viva do seu trabalho (...). Todo mundo sabe que essa é uma tarefa difícil. O Brasil foi o último país da América do Sul a fazer a experiência da reforma agrária.

Clique aqui para ler a reportagem. O governo não tem dinheiro? Que percentual da conta de juros seria necessário para arrumar dinheiro para uma reforma agrária de verdade? Quantos dos R$ 500 bi do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) seriam precisos para tirar a reforma agrária do marasmo? Eis aí outras boas perguntas para a coletiva. Agora, o que mais me chamou a atenção na declaração do presidente em Uberaba foi ele falar de "tarefa difícil". Lembrei de uma daquelas tiradas emblemáticas do Sr. Frias. Na relação direta com ele, os mais espertos aprendiam rapidamente que não era boa política se lamentar sobre as dificuldades da missão. O incauto que inadvertidamente escorregasse para a expressão "tarefa difícil" receberia de volta uma resposta mortal:

- Se fosse fácil, meu filho, eu mesmo faria. Eu não precisaria de você para fazer.

Se fosse fácil fazer a reforma agrária no Brasil, alguém já teria feito antes de Lula se eleger presidente. Aliás, pelo que consta, Luiz Inácio Lula da Silva quis chegar à presidência exatamente para realizar as coisas difíceis que os antecessores não puderam ou não desejaram fazer. Pelo visto, a falta de oposição e de cobrança de resultados anda fazendo muito mal ao nosso presidente.

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segunda-feira, 7 de janeiro de 2008

Vergonha na reforma agrária (07/01)

A Folha de S.Paulo traz reportagem em que mostra a paralisia da reforma agrária neste segundo governo de Luiz Inácio Lula da Silva. De duas uma: ou o PT acha que a reforma agrária deixou de fazer sentido, ou o partido explica por que caminha para o fracasso nessa área. Da minha parte, creio não ser circunstancial que o breque na já fraquinha reforma agrária do governo Lula tenha acontecido bem no ano em que a administração petista fez a sua opção preferencial pela monocultura canavieira, pela aliança com os Estados Unidos em torno do etanol e pela aventura de tentar fazer do álcool a salvação do american way of life. O colapso da reforma agrária é produto dessa opção. Que aliás vem sendo criticada aqui desde o começo (Governo vegetariano e terras finitas). Uma conseqüência política grave desse viés latifundiário da política petista para o campo é o afastamento em relação a sua base social. Isso cobrará um preço em seu devido tempo. Como está comprovado, pender à direita não garante ao governo apoio na direita. A direita é insaciável. Apenas faz com perca apoio precioso à esquerda.

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terça-feira, 10 de abril de 2007

Esquerda e direita, sócias (10/04)

Artigo publicado hoje no Correio Braziliense:

Esquerda e direita, sócias

Alon Feuerwerker

Entre os grandes países em território, o Brasil é o único no qual a questão fundiária permanece como um problema nacional sem solução. Tal peculiaridade se deve ao nosso histórico de modernizações conservadoras. Somos uma nação que obteve a independência sem revogar a escravidão e proclamou a República sem fazer a reforma agrária. Ao longo de cinco séculos, o latifúndio brasileiro vem se reciclando para não morrer. Agora mesmo, a grande propriedade produtora de açúcar e álcool é louvada pelo presidente da República como a nova heroína na batalha para tornar o Brasil um campeão mundial nos biocombustíveis.

A defesa do latifúndio tem sido historicamente associada à direita, mas não deixa de ser curioso que a reforma agrária e a questão fundiária tenham permanecido no limbo durante o governo do PT. Não há diferença qualitativa entre o tratamento dado ao problema nesta administração e nas anteriores. Os assentamentos seguem em passo de tartaruga, e a nova desculpa é que os recursos oficiais devem ser investidos na elevação da qualidade de vida dos assentados. Ou seja, para o governo do PT a reforma agrária é uma questão social, e não sócio-econômica. Não se nota qualquer preocupação governamental com a liberação de forças produtivas no campo a partir da democratização da propriedade territorial.

A elite brasileira tem sido competente para dar sobrevida ao latifúndio, que vem silenciosamente se modernizando em aliança com o capital. Mas seria injusto debitar essa “via prussiana” apenas na conta da direita. A esquerda é a nova sócia da direita no congelamento da reforma agrária no Brasil. E uma das razões é que, a pretexto de combater o neoliberalismo, a esquerda brasileira e os movimentos sociais que deveriam representar a força transformadora no campo estão aprisionados pela lógica do preservacionismo cego, pela ortodoxia do ambientalismo global.

Se quisermos encontrar terra disponível em grandes quantidades para fazer a reforma agrária no Brasil, basta olhar para o norte. Mas o destino que as grandes potências enxergam para a Amazônia é o de reserva intocada. Para que, naturalmente, eles a explorem de acordo com as suas conveniências no futuro –quando a água se tornar um bem mais escasso ainda e quando a biotecnologia adquirir o protagonismo previsto. Toda a pressão sobre o nosso país é para que deixe a Amazônia como está. E a esquerda e os movimentos sociais brasileiros, que construíram sua identidade recente na “luta contra o neoliberalismo”, são hoje reféns da agenda neoliberal para o Brasil. Qual é o coração dessa agenda? Crescer pouco, em nome de nossas “responsabilidades planetárias”. Sacrificar o futuro dos jovens de nossas periferias em troca de recebermos uma medalha de honra como bons guardadores de jardim zoológico e jardim botânico.

Um governo verdadeiramente patriótico e popular colocaria no primeiro ponto da agenda nacional a colonização da Amazônia, centrada na agricultura familiar, no cooperativismo e no crescimento ambientalmente sustentável da produção agropecuária. A Amazônia não é um problema. Ela é a mãe de todas as soluções. A expansão ordenada na Amazônia será a oportunidade de uma vida mais próspera para milhões de brasileiros. Teremos uma base demográfica para consolidar nossa soberania sobre a fronteira norte do Brasil. Criaremos uma base material para melhor integrar os países e povos do continente. E estaremos munidos de uma política ambientalmente eficaz. Hoje, por não oferecer alternativas econômicas para a maioria, o preservacionismo cego anda de mãos dadas com a devastação.

Mais cedo ou mais tarde, o Brasil terá que se voltar para a Amazônia. A própria Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) reconheceu a importância do tema e o adotou para a Campanha da Fraternidade deste ano. Aliás, as dificuldades vividas pela Igreja Católica na abordagem da questão amazônica sintetizam de algum modo os impasses nacionais relacionados à região. Por que o catolicismo perdeu espaço na Amazônia? Também porque, quem sabe?, tenha deixado de representar, para o homem e a mulher locais, uma fé relacionada ao progresso, à melhoria da qualidade de vida e à prosperidade. O que não deixa de ser paradoxal, já que a Igreja Católica talvez seja quem lute há mais tempo pelo primado da agricultura familiar em nosso país.

Alon Feuerwerker foi repórter especial do Correio Braziliense e edita o Blog do Alon (www.blogdoalon.com.br)


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domingo, 11 de março de 2007

Duas medidas simples, para evitar as más companhias - ATUALIZADO (11/03)

A visita do presidente dos Estados Unidos ao Brasil colocou o selo que faltava no acordo entre as duas nações em torno do principal biocombustível derivado da cana de açúcar: o etanol (na imagem, a molécula). Bom para o Brasil, que caminha para se transformar num ator global em energia, papel até agora monopolizado pelos países exportadores de combustíveis fósseis. E bom para os Estados Unidos, por alavancar uma fonte energética renovável, capaz de fazê-los depender menos de regiões instáveis do planeta, marcadas por conflitos bélicos. Na última vez que um governo brasileiro foi chamado pelos americanos para participar ativamente da estratégia de segurança nacional dos Estados Unidos, saímo-nos bastante bem: em troca da entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial, o presidente Getúlio Vargas conseguiu recursos que lhe permitiram, por exemplo, instalar a Companhia Siderúrgica Nacional em Volta Redonda. Agora, é Luiz Inácio Lula da Silva quem tem nas mãos a chance de passar à história como um presidente que inovou, que aproveitou a oportunidade oferecida pelo destino e fez algo de diferente, de melhor para o seu povo. A cana de açúcar está na raiz da formação da nacionalidade brasileira. Foi a primeira monocultura, a primeira plataforma de exportação das riquezas nacionais, o primeiro vetor para a colonização do país. Foi também a responsável maior por inocular a chaga da escravidão no nosso código genético. É consenso entre os historiadores que os quatro séculos da escravidão no Brasil explicam a maior parte das mazelas nacionais. Pelo menos daquelas mazelas que nos distinguem dos demais países. A escravidão está na raiz da nossa desigualdade crônica, da nossa incapacidade de enxergar valor positivo na cultura do trabalho e da prosperidade, da nossa tendência ao desperdício, da nossa tolerância à brutalidade. Deus dotou o Brasil de um cenário natural único. Ninguém tem tanta terra agricultável, tanta água ou tanta luz incidindo sobre áreas férteis. Aqui não temos terremoto, furação, deserto ou neve. Por isso, os portugueses que chegaram ao Brasil imaginaram ter encontrado nestas plagas um ambiente que era quase o paraíso. Aí tiveram a idéia de melhorar ainda mais a obra divina, de acrescentar o que faltava: escravos, para que eles próprios, portugueses, não precisassem nem trabalhar. O resultado da boa idéia dos nossos patrícios é conhecido de todos. O Brasil é um país que alcançou a sua independência sem abolir a escravidão e proclamou a República sem realizar a reforma agrária. A indústria do açúcar e do álcool talvez seja a síntese mais acabada dessa insistente modernização conservadora (prussiana), que amarra os nossos pés há séculos. A herança do latifúndio está lá, na concentração da propriedade territorial. As marcas da escravidão também estão, nas condições desumanas de trabalho e na baixa remuneração dos trabalhadores nos canaviais (não em relação a outros colegas pouco qualificados, mas em relação à riqueza produzida). Esse quadro é especialmente dramático no nordeste brasileiro. E, como corolário de tudo, vem o dano ambiental. Ninguém deseja que o Brasil fique fora da caravana mundial do etanol proposta pelos Estados Unidos. Ela representa para nós uma oportunidade de crescer, de gerar emprego e renda, de avançar no domínio de conhecimentos essenciais para o progresso humano. Precisamos, porém, fazer esse movimento de maneira diferente da habitual. Se vamos inovar na tecnologia e na ciência [e espero que o Brasil saia desse ciclo com uma poderosa indústria alcoolquímica, e não apenas como exportador de energia barata, como transferidor de capacidade fotossintética], que inovemos também, e principalmente, na organização social do trabalho e na distribuição mais democrática dos benefícios do progresso. O ramo sucroalcooleiro, definitivamente, já produziu desigualdade suficiente no Brasil. Com isso, cresceu e enriqueceu. Ótimo para eles, mas agora chegou o momento de distribuir. Sabe-se que a reforma agrária do governo do PT vai mal, patina. Pois bem, eis uma oportunidade de ouro para fazer deslanchar a reforma agrária na administração Lula. Por que não acelerar a implantação de cooperativas de agricultores familiares e, com o devido investimento público, criar unidades de produção de álcool nessas áreas? Por que não obrigar os grandes usineiros a transferirem, compulsoriamente, tecnologia para as cooperativas de pequenos produtores? Por que restringir o acesso de pequenos proprietários de terra ao progresso trazido pelo etanol de Lula e George W. Bush? Por que repetir mais uma vez o ciclo prussiano? Há pelo menos duas iniciativas, simples e práticas, que o governo federal poderia adotar, se quiser de fato sinalizar que desta vez a história será diferente. Acelerar a votação da Proposta de Emenda Constitucional (PEC 438/01) que determina desapropriação de terras onde for constatada exploração de trabalhadores em condições análogas à de escravidão. As áreas seriam destinadas à reforma agrária e seus proprietários não receberiam nenhum tipo de indenização. A proposição já foi aprovada em primeiro turno na Câmara dos Deputados em 2004, mas dorme na gaveta desde então. Aliás, a mesma coisa deveria ser feita com terras em que se cultivam insumos para drogas proibidas. Outra boa medida seria rever, para cima, os índices de produtividade exigidos para que uma área escape da expropriação por interesse social. Os índices em vigor são de 1980, baseados num recenseamento agropecuário de 1975. A portaria para atualizá-los repousa em algum escaninho do Palácio do Planalto. Duas medidas singelas, com as quais Lula poderia calar seus críticos. O presidente mostraria que o alinhamento com os americanos no álcool atende, sim, aos interesses nacionais, mas não significa que ele, Lula, e o seu partido, o PT, tenham abandonado os compromissos históricos com os trabalhadores e a reforma agrária. Com terra mais barata e apoio técnico e financeiro, os pequenos no campo teriam, finalmente, lugar no trem do progresso. E o presidente ficaria bem na foto. Pelo menos, Lula ficaria longe de figurar num outro retrato, montado ao longo dos séculos. A imagem reúne donatários de capitanias, traficantes de escravos, senhores de engenho, usineiros milionários, caçadores de negros fugidos, caloteiros do Pró-Alcool e latifundiários em geral. Nosso presidente não merece essas más companhias, acho eu.

Atualizaçao (12/03 às 15h06): Leia também que Produção de etanol precisará aumentar 12 vezes para substituir 10% da gasolina (Agência Brasil)

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quinta-feira, 29 de julho de 2010

De acordo no essencial (29/07)

Alguma terra foi distribuída, algum dinheiro foi dado. E só

As ruidosas diferenças entre PT e PSDB sobre o tratamento a dar ao MST e outras organizações da luta rural encobrem uma concordância básica: para ambos, a reforma agrária deixou de fazer sentido no atual estágio do desenvolvimento capitalista brasileiro.

O diagnóstico comum não surpreende quem acompanhou a formação das duas correntes políticas. Já nos anos 1970 era a posição dos teóricos e militantes dos grupos que estão nas raízes do peessedebismo e do petismo. Que aliás remetem à antiga Ação Popular, organização da esquerda católica nos anos 1960.

A derrota do PC do B na guerrilha do Araguaia talvez reste para a História como o marco simbólico dessa transição de conceitos. Saía silenciosamente de cena a luta pela distribuição de terra, entrava o combate dos trabalhadores rurais pela carteira assinada, condições dignas de trabalho, etc.

Nas últimas décadas, a reforma agrária persistiu no noticiário, e mesmo em políticas compensatórias de governos. Alguma terra foi distribuída, algum dinheiro foi dado. Os movimentos sociais passaram a ser recebidos em palácio. E só.

Qualquer um que conversa a sério com Luiz Inácio Lula da Silva a respeito pode informar sobre a opinião dele: a reforma agrária deveria ter sido feita lá atrás; como não foi, agora o quadro é outro.

Aos movimentos sociais, recursos e discursos em doses suficientes para aplacar as tensões. Já a política agrária para valer é feita com os grandes parceiros empresariais.

Dos transgênicos ao álcool combustível, passando pela luta em defesa do boi e da soja na fronteira agrícola, nenhum presidente conseguiria ser mais “ruralista” do que Lula foi.

A oposição que Lula sofre no assim chamado agronegócio é fundamentalmente ideológica, consequência das dúvidas ainda existentes sobre a transformação radical nos compromissos estratégicos do PT.

O business rural preferiria um câmbio menos apreciado? Sim, desde que o governo também desse um jeito de impedir o encarecimento dos insumos e maquinaria importados.

E se Lula é o campeão do real valorizado, o vice-campeão foi Fernando Henrique Cardoso. Antes e agora a agricultura tem sido vista como mecanismo eficaz de controle inflacionário, numa transferência maciça de renda do campo para a cidade.

O que não chegaria a ser problema, se essa renda estivesse sendo usada para promover um crescimento industrial acelerado. Em vez de um pedaço de terra, um bom emprego. Talvez menos seguro, mas ainda assim atraente. Especialmente porque a tendência dos jovens rurais — irrefreável — é ir para cidade. Por razões óbvias.

Onde está a encrenca? No fato de a sociedade brasileira carregar com ela um viés anti-industrialista, que vem desde a colonização portuguesa. Sorte que dos três principais candidatos, pelos menos dois, Dilma Rousseff e José Serra, são em teoria “desenvolvimentistas”.

Digo em teoria porque nenhum dos líderes da corrida pelo Palácio do Planalto disse até agora como vai fazer para criar os milhões e milhões de empregos industriais necessários para absorver a mão de obra nacional, especialmente a jovem.

Enquanto José Serra enfatiza a dureza de tratamento a quem atenta contra o direito de propriedade, Dilma procura o contraponto relativo, ressaltando que prefere o diálogo. Sim, mas e o que fazer com a reforma agrária? Onde estão as diferenças?

E tem mais. Quais as medidas práticas que cada candidato vai adotar, se for eleito, para desde o primeiro dia de governo reverter a tendência recente de perda de participação da indústria nas exportações? Como fazer para desconcentrar o crescimento industrial, sem prejudicar as regiões já desenvolvidas? Quais os investimentos previstos para a formação maciça de mão de obra exigida por uma nação que escolhe o rumo da industrialização acelerada?

E, se é possível fazer, por que ainda não foi feito?

Catastrofismo

O vazamento de petróleo no Golfo do México foi uma catástrofe, mas também parece ter havido muito catastrofismo. Aqui, aliás, Lula deu azar. Os americanos conseguiram começar a resolver o problema bem no dia em que o nosso presidente questionou a competência deles para achar a solução.

Claro que nem Lula nem a Petrobras tinham ideia de como solucionar a encrenca, mas quem disse que o presidente perderia a oportunidade de pontificar sobre as dificuldades alheias? De espargir lições abstratas?

Picuinhas à parte, o mais surpreendente é que a natureza e a ação do homem estão reduzindo os efeitos do desastre bem mais rapidamente do que se imaginava. Quem achava que o problema dali jogaria água fria no nosso pré-sal deu com os burros n’água.

Coluna (Nas entrelinhas) publicada nesta quinta (29) no Correio Braziliense.

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quarta-feira, 6 de fevereiro de 2008

Boa notícia na reforma agrária (06/02)

Reportagem de Roldão Arruda no Estadão traz ótimas novas:

Só nos meses de janeiro e fevereiro deste ano - um ano eleitoral - o governo federal deve desapropriar mais terras para a reforma agrária do que fez durante os 12 meses de 2007. Em janeiro, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva já destinou para a reforma, por meio de decretos de desapropriação, 107 mil hectares de terra - o que representa mais da metade dos 207 mil hectares obtidos durante todo o ano passado. Em fevereiro haverá outro salto. De acordo com informações do ministro do Desenvolvimento Agrário, Guilherme Cassel, o presidente deve assinar neste mês mais decretos de desapropriação, com 148 mil hectares. No total, serão 255 mil hectares em dois meses. De acordo com levantamentos preliminares, essa terra pode abrigar cerca de 8 mil famílias. No ano passado inteiro, programas semelhantes do governo beneficiaram 5.300 famílias. (Continua...)

Tenho aqui criticado sistematicamente o abandono da reforma agrária no governo Luiz Inácio Lula da Silva. Clique aqui para uma busca por "reforma agrária" no blog. Como eu sempre torço para estar errado nos prognósticos que implicam coisas ruins para o Brasil, espero que a notícia trazida pelo Roldão represente de fato uma mudança de rumo e que meu pessimismo se mostre sem razão de ser.

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quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Responder com fatos, aceitar críticas (15/10)

Encharcado nos índices do presidente, o PT agora é assim: se o sujeito critica alguma coisa no governo de Luiz Inácio Lula da Silva é porque faz parte de uma conspiração qualquer contra Lula, contra o PT ou contra a candidatura de Dilma

A senadora Kátia Abreu (DEM-TO) prestou um serviço ao Brasil, e ao próprio governo, ao divulgar pesquisa do Ibope com números deprimentes sobre a situação dos assentados pela reforma agrária. Registre-se que a parlamentar é também presidente da Confederação Nacional da Agricultura (CNA), contratante da pesquisa. Não significa muita coisa. Outro dia o PT divulgou um levantamento, encomendado por ele próprio, no qual quase um terço do eleitorado brasileiro declara apoio ao partido. O PT achou ótimo. Parabéns ao PT.

A reação no petismo aos números do Ibope/CNA foi a de praxe, pelo menos nos últimos tempos. Saíram rapidamente a desqualificar. Encharcado nos índices de popularidade do presidente da República, o PT agora é assim: se o sujeito critica alguma coisa no governo de Luiz Inácio Lula da Silva é porque faz parte de uma conspiração qualquer contra o presidente, contra o PT ou contra a candidatura de Dilma Rousseff.

É a era do primado da “luta política”, um cenário de primarismo mental, de regressão intelectual, em que o mérito dos assuntos deixa de ter importância, substituído pelo único critério aceitável no poder: se está conosco, está certo; se não, está errado.

Por que digo que a senadora ruralista, presidente da CNA e opositora ferrenha de Lula, prestou um serviço ao país e ao governo? Porque há duas hipóteses. Ou os números apresentados pelo Ibope refletem em algum grau a realidade, ou eles estão completamente divorciados dos fatos. Abre-se uma excelente oportunidade para o Ministério do Desenvolvimento Agrário e o Incra demonstrarem que a reforma agrária de Lula é um sucesso. Basta provar que os assentamentos no governo do PT se transformaram em polos dinâmicos de produção e prosperidade.

Mas não basta algum burocrata disciplinado convocar entrevista coletiva no ar-condicionado de Brasília para despejar números. Será mais adequado que também nisso o governo siga o exemplo do presidente. Ontem, Lula iniciou um périplo pelas obras de transposição do São Francisco. Ótimo. Por que não fazer o mesmo nos assentamentos do Incra?

E a coisa poderia ser montada de um jeito democrático. Um terço das visitas seriam feitas a locais indicados pelo governo, outro terço a áreas apontadas pela CNA e o terço restante a assentamentos listados pelos movimentos de luta no campo. Vejam que estou dando de lambuja ao governismo uma vantagem e tanto.

Ao longo de toda a administração Fernando Henrique Cardoso, o PT e Lula insistiram que a reforma agrária dos tucanos era insuficiente, porque distribuía pouca terra. No poder, o discurso mudou. Distribuir mais terra deixou de ser a prioridade, e os recursos passariam a ser empregados maciçamente em investimentos para melhorar as condições de vida e aumentar a produtividade nos assentamentos. Já foi um recuo programático e tanto. Será que mesmo assim o governo fracassou?

Diante da pesquisa, as autoridades responsáveis responderam de um jeito esperto. Argumentaram que os números dela devem estar errados, já que a produtividade da agricultura familiar é mais alta até que a do agronegócio praticado em grandes propriedades. Ora, a pesquisa não trata da agricultura familiar em geral; trata dos assentamentos da reforma agrária. Se o governo não sabe diferenciar os dois conceitos, estamos diante de um problema. Ou de uma esperteza. Ou das duas coisas.

No poder, o PT não acelerou significativamente a democratização da propriedade rural, preferiu aliar-se ao latifúndio monocultor modernizado. Verdade que as verbas destinadas à agricultura familiar cresceram expressivamente. Do que decorre uma conclusão: se os números do Ibope/CNA têm alguma conexão com a realidade, provavelmente a expansão do Pronaf não está sendo bem administrada. É possível que o dinheiro não esteja chegando onde deveria.

O governo que se explique. E que tome providências. É assim que funciona (ou deveria funcionar) na democracia.

Desmoralização

Por falar em democracia, é desmoralizante para o governo brasileiro que as autoridades de Cuba tenham impedido a visita ao Brasil da blogueira dissidente Yoani Sánchez. Ela viria ao nosso país lançar um livro.

Mais desmoralizante ainda é a proibição ter passado batida, sem reação à altura do Itamaraty. A mesma chancelaria que se empenhou tanto para a retomada da normalidade democrática em Honduras.

Coluna (Nas entrelinhas) publicada hoje no Correio Braziliense.

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quarta-feira, 19 de novembro de 2008

A Índia vai se dar bem (19/11)

Este é um post para (tentar) fazer pensar quem acha a reforma agrária um atraso de vida. Escrevi tempos atrás que temos uma dívida com os indianos e os chineses, por terem impedido em Genebra a conclusão da Rodada Doha da Organização Mundial do Comércio (OMC). Está em Amigos indianos e chineses:

Enquanto isso, em Genebra, Índia e China cuidavam de brecar um acordo global que ameaçaria os pequenos agricultores e a indústria emergente de países que não se conformam com a permanência na segunda divisão da economia mundial. O Brasil é mesmo uma nação de sorte: se não sabemos zelar pelos nossos interesses, temos quem o faça por nós. Obrigado aos indianos e aos chineses.

Sobre a necessária proteção à nossa indústria, tratei dois posts atrás (A vida como ela é). Agora leia esta interessante reportagem da Bloomberg:

India's New Roads May Buffer Economy From Recession

The 100 kilometers (62 miles) of rural roads India is adding each day may save Asia's third- largest economy from the worst of a global recession. New roads built so far under the $27 billion program have brought urban markets within reach of 60 million village dwellers over the past five years, letting them earn money selling fruits, vegetables and milk that would have spoiled otherwise. They are now spending their cash just as the world economy falters. ``Rural demand is keeping the economy kicking along,'' said Shashanka Bhide, chief economist at the privately funded National Council of Applied Economic Research in New Delhi. ``Growth will slow in India, but not as dramatically as the rest of the world.'' Some of India's biggest companies are already benefiting: shares of Hindustan Unilever Ltd., the biggest maker of household products, and Hero Honda Motors Ltd., India's largest motorcycle maker, are up this year while the benchmark stock index has plunged 57 percent. Domestic spending will help cushion India from the worst global meltdown since the Great Depression, according to the Reserve Bank of India.

Leia a reportagem completa. E você verá que, em resumo, a agricultura familiar indiana está capitalizada, graças também a investimentos públicos em infra-estrutura para armazenamento e escoamento eficazes da pequena produção rural. E esse dinheiro no bolso do pequeno agricultor é hoje a esperança de que a crise econômica planetária chegue à Índia em versão atenuada. Pena que a reforma agrária tenha sido deixada em enésimo plano aqui no Brasil. Uma reforma agrária baseada na estrutura familiar, na expansão ordenada da fronteira agrícola. No estímulo à produtividade. Não aconteceu. Nem antes com o PSDB e nem agora com o PT. Políticos urbanos demais. Uma turma que eu conheço dos anos 70, quando já defendiam que a luta no campo não era pela reforma agrária, mas pela formalização do trabalho rural assalariado. Eu poderia dizer políticos "sulistas" demais, mas seria um erro. O que faz a prosperidade em muitas regiões do Rio Grande do Sul, de Santa Catarina e do Paraná? A agricultura familiar. O certo seria dizer políticos elitistas demais. E leia também Esquerda e direita, sócias, para ver como, na minha opinião, a aliança do ambientalismo global com os movimentos sociais no Brasil serve como motor auxiliar desse elitismo. E, já que você está a fim de ler, leia também O ambientalismo num só país, de dois anos atrás.

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sexta-feira, 9 de outubro de 2009

Quando a vida espreme o MST (09/10)

Em vez de conquistar a reforma agrária onde ela faz sentido, o MST está encurralado onde a via prussiana já se encarregou de implantar o capitalismo

O Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) está na encruzilhada. Sua bandeira clássica de luta contra o latifúndio improdutivo enfrenta as agruras da passagem do tempo. A grande propriedade improdutiva no Brasil vem pouco a pouco deixando de existir como tal. De um lado, ela sofre a “reforma agrária biológica”, a pulverização territorial por herança. De outro, assiste ao avanço da produção intensiva em capital.

Na política, o cenário tampouco é animador para o movimento. No governo de Luiz Inácio Lula da Silva a reforma agrária foi transformada em subdepartamento dos programas sociais. O PT preferiu olhar com simpatia para a grande propriedade capitalista. Lula teve suas razões para dar as costas ao público tradicional dele: o agronegócio, além do poder no Parlamento e da força financeira, é uma perna vital no desempenho das exportações.

Qual seria a saída natural para o MST? Acoplar a luta pela democratização da terra ao movimento de ocupação territorial do país. O povoamento efetivo do território é possivelmente o grande desafio do Brasil neste século 21. Em vez de cortar pés de laranja em São Paulo, talvez o MST devesse gastar o tempo lutando para que a expansão da fronteira agrícola dê prioridade à agricultura familiar e à produção de comida destinada ao mercado interno.

Só que o MST não quer caminhar por aí, talvez por razões políticas. Por causa das alianças que construiu nos últimos anos, com o ambientalismo global e com as organizações dedicadas a criminalizar o desenvolvimento do Brasil. Assim, em vez de conquistar a reforma agrária onde ela faz sentido historicamente, o MST está encurralado nos lugares em que a via prussiana, pelo alto, já se encarregou, de um jeito ou de outro, de instalar o capitalismo.

A consequência óbvia é um comportamento regressista, niilista e ludista. Destruir meios de produção como método de luta para alegadamente democratizar os meios de produção. Para um movimento que nasceu defendendo o progresso para todos e a universalização do direito de propriedade, é uma caminhada e tanto para trás.

O valor da floresta em pé

Sobre o debate abordado aqui ontem a respeito do novo Código Florestal, um leitor (que pede para não se identificar) escreve dizendo que não há contradição entre preservar e produzir. Diz que é perfeitamente possível fazer o manejo das vegetações naturais de modo a, simultaneamente, respeitar os limites legais e garantir a produtividade de pequenas e médias propriedades. Especialmente na Amazônia.

Deve ser mesmo possível, pois há muita gente boa que garante isso. Qual é o problema? É que até hoje não se construiu um caminho prático para que a floresta em pé valha mais do que a derrubada. No dia em que a inequação for invertida, o assunto estará resolvido. Talvez resida aí o grande desafio programático para a senadora Marina Silva (AC), pré-candidata do PV à Presidência da República.

Não há como impedir que o sujeito busque uma vida melhor para si e sua família. Haja a lei que houver, ele vai buscar isso. É divertido quando as autoridades ambientais apresentam a queda nas taxas de desmatamento como resultado direto de alguma ação governamental. O desmatamento cresce ou diminui quase sincronizadamente com a aceleração ou desaceleração do PIB, do consumo e das exportações.

A expansão das fronteiras agrícolas no planeta é função do crescimento do mercado. E as pressões só tendem a aumentar. Ainda há muita gente abaixo de padrões aceitáveis de consumo. Especialmente na Ásia, na África e na América Latina.

Um favor ao Brasil

Os argumentos do governo a favor do regime de partilha no pré-sal têm fundamento, assim como as vantagens competitivas proporcionadas à Petrobras. O mesmo se dá com o fundo soberano. O que o governo não explicou até agora — pelo menos do ângulo do interesse público — é por que criar uma nova estatal do petróleo. E com atribuições quase divinas.
Dizem que na Noruega é assim. Mas não é porque funciona na Noruega que vai funcionar no Brasil. A monarquia, por exemplo, talvez não seja o caso de importar dali.

A estatal do pré-sal leva todo o jeito de ser só uma moeda de troca política. Uma imperatriz do petróleo, loteada politicamente e com poderes absolutos de gestão. Poderá ser útil a Dilma Rousseff na construção das alianças para 2010, mas depois será um foco de problemas para o Brasil — e para Dilma, caso ela se eleja.

O Congresso Nacional fará um favor ao país se derrubar a ideia.

Coluna (Nas entrelinhas) publicada hoje no Correio Braziliense.

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segunda-feira, 16 de abril de 2007

O MST, o professor e a dúvida que permanece (16/04)

O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) decidiu mirar direto no presidente Luiz Inácio Lula da Silva para desempacar a reforma agrária no Brasil. Leia a reportagem de Verena Glass na Carta Maior. A posição do MST é razoável. Tenho escrito aqui que a reforma agrária patina no governo Lula. Aliás, faltou agradecer a gentil referência feita pelo colega blogueiro José Dirceu ao artigo que publiquei no Correio Braziliense sobre o assunto. Qual é, oficialmente, o principal entrave à reforma agrária no Brasil? A falta de terras para desapropriação. É por isso que os movimentos sociais do campo reivindicam corrigir para cima os índices mínimos de produtividade necessários para evitar que determinada área seja desapropriada por interesse social. Boa sorte ao MST na sua luta. Em contraste com essa realidade de escassez de terras, o professor Rogério Cezar de Cerqueira Leite interveio na Folha de S.Paulo de ontem para descascar os que têm dúvidas sobre o anunciado milagre do etanol. Aliás, mesmo quem não se interessa pelo assunto deve ler o texto do professor. Chega a ser espantoso que alguém com o nível intelectual dele recorra à retórica da fúria para tentar desqualificar quem discorda de suas verdades absolutas. Pelo visto, a alma humana é mesmo insondável. De repente, o sujeito explode sem que se saiba bem por quê. A tese de Cerqueira Leite e dos demais gladiadores do etanol é conhecida: a cana necessária para expandir fortemente a produção de álcool será plantada em terras ociosas. Eu, aqui do meu canto, vou continuar repetindo algumas perguntas, até que elas sejam convincentemente respondidas. Se, de fato, existem áreas de baixa produtividade disponíveis, por que então falta terra para a reforma agrária? Se não existem, o que se cultiva hoje nas terras que serão destinadas à cana? Nesse segundo caso, como garantir que a cana não vai empurrar outros ramos do agronegócio para áreas de preservação ambiental, reservas legais e terras indígenas? Essas e outras são dúvidas legítimas, que nem todos os adjetivos e toda a arrogância do professor Cerqueira Leite vão conseguir desqualificar.

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sexta-feira, 30 de abril de 2010

O MST sem aliados (30/04)

Não há ator relevante da política disposto a defender o MST. O movimento hoje luta pela reforma agrária onde ela não é mais possível — pelo menos no capitalismo — e renuncia a buscá-la onde é necessária. Daí o isolamento

O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) desempenha um papel importante no Brasil. Se não por outro motivo, ao fazer recordar todo dia que o direito à propriedade é universal. Direito de propriedade só para alguns é contradição em termos.

Eis um aspecto bonito da reforma agrária. Ela talvez materialize melhor que outras bandeiras o desejo de o direito de propriedade ser praticado da maneira mais ampla e absoluta.

Como então os portadores dessa aspiração amplíssima chegaram ao isolamento político, facilmente verificável? Ontem Dilma Rousseff não citou o MST, mas mandou o recado de que não admite ilegalidades.

A ocupação de fazendas é ilegal, quando a Justiça assim decide. A mensagem não poderia ter sido mais clara.

Antes, José Serra tinha ido na mesma linha, só que mais explicitamente. Pois não está obrigado a tratar o tema com luvas macias.

O isolamento político do MST obedece também a razões estruturais.

O Brasil é um país secularmente reacionário quando o assunto é a terra. Aqui, a Independência não aboliu a escravidão e a República não trouxe a reforma agrária. Esta só avançou — pasmem! — a partir do regime militar, quando o presidente Castelo Branco deu ao país o Estatuto da Terra.

A redução do direito de propriedade a prerrogativa de alguns é construção ideológica arraigada entre nós. Mas o isolamento político do MST não bebe só dessa fonte. Suas raízes conjunturais estão na total assimetria entre a estratégia do movimento e o projeto de construção nacional.

Qual o sentido de o MST acampar à beira de estradas do Sul-Sudeste, ao lado de propriedades que já fizeram a transição para a agricultura plenamente capitalista, em vez de pressionar o governo para que a expansão da fronteira agrícola aconteça com base na democratização territorial?

Infelizmente, o MST deixou-se enredar já faz algum tempo numa aliança com as forças que procuram nos impor o congelamento da fronteira agrícola, o abandono da engenharia genética e a renúncia à população das fronteiras. Dessa aliança não sai — nem vai sair — nada útil para o país.

É como cruzar espécies distintas. Dá até prolezinha, mas estéril. Uma esterilidade política bem desenhada em teses como “a luta contra o agronegócio”.

Em resumo, o MST hoje busca a reforma agrária onde ela não é mais possível — pelo menos no capitalismo — e renuncia a buscá-la onde é necessária. Daí o isolamento.

Fraqueza que chega ao ponto de não conseguir arrancar do governo Luiz Inácio Lula da Silva nem a atualização dos índices mínimos de produtividade da terra para ela atender ao interesse social.

Cicatriz colonial

Houve alguma confusão ontem sobre a escolha de Lula como um dos indivíduos mais influentes, na relação organizada pela revista americana Time.

No fritar dos ovos, importa menos se o presidente é o primeiro da lista, ou o 17º. Ou o nono. É melhor estar nessas listas do que não estar. Mesmo que se discutam seus critérios.

Um detalhe porém chama a atenção em ocasiões assim. A necessidade quase patológica que temos do “reconhecimento internacional”. Precisamos sempre de um atestado, europeu ou americano, de estarmos fazendo as “coisas certas”.

É o velho complexo de inferioridade. Lula faz um bom governo, e isso se expressa nos resultados objetivos e na popularidade dele. Esse juízo não depende de o presidente comparecer ou não às capas das revistas americanas e europeias.

Mas o Planalto sabe que país governa. Um país complexado. Daí que tenha nos anos recentes colocado para rodar uma bem azeitada máquina de lobby junto às principais publicações do “Primeiro Mundo”.

Nesta terra de colonizados, falarem bem de você “lá fora” costuma valer ouro. E falarem mal é visto como tragédia.

Tirar uma nação da situação colonial é difícil, mas nada que se compare ao grau de dificuldade de tirar a cicatriz colonial da alma dela.

Coluna (Nas entrelinhas) publicada nesta quinta (30) no Correio Braziliense.

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quinta-feira, 15 de março de 2007

Uma dúvida sobre o álcool e a reforma agrária (15/03)

Um dos argumentos mais repetidos pelos defensores da expansão acelerada do cultivo de cana de açúcar para a produção de etanol é que a cana não ocuparia áreas em que persiste a vegetação dita natural, mas substituiria, por exemplo, pastagens em áreas degradadas. Ou seja, penetraria em terras que hoje têm baixa produtividade. Se o argumento for verdadeiro, fica uma pergunta para o INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária): por que essas áreas de pequena produtividade não estão sendo utilizadas no programa de reforma agrária do governo federal? Se temos terras mal-aproveitadas em quantidade suficiente para transformar o Brasil na principal fonte planetária de álcool etílico, por que o instituto diz que falta terra para um programa mais agressivo de assentamentos?

Leia também sobre o balanço da Reforma Agrária no governo Lula.

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domingo, 30 de setembro de 2007

A marca do reacionarismo (30/09)

Há poucas dúvidas nesta altura do campeonato de que a política fundiária de Luiz Inácio Lula da Silva é não apenas conservadora, mas corre o risco de ser classificada como reacionária, pelo seu prussianismo. Dois trechos de reportagens do Jornal do Brasil esta semana:

1) Desenfreada invasão estrangeira

Governo não controla compras de terras por grandes multinacionais

Vasconcelo Quadros

BRASÍLIA - O esforço do presidente Luiz Inácio Lula da Silva em vender o Brasil como futuro pólo mundial do biocombustível está provocando uma explosão no mercado de terras, mas desnudou uma realidade grave para a soberania do país: o governo não tem qualquer controle sobre quem são e quantos milhões de hectares de terras estão nas mãos de estrangeiros hoje. Nem tem mecanismos legais para controlar a voracidade de grupos estrangeiros que, segundo dados do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), estão investindo pesado na compra de terras no Oeste da Bahia, Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, Tocantins, Maranhão, Pará e em São Paulo. (...)

2) Brasileiros perdem o interesse

BRASÍLIA. O presidente do Incra, Rolf Hackbart, disse que o aumento da procura e compra de terras por estrangeiros pelo interior do Brasil está afastando do mercado os investidores nacionais e criando dificuldades ao governo na aquisição de propriedades para formação de estoques destinados à reforma agrária um dos eixos do programa de inclusão social do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Há uma competição forte com a reforma agrária porque os compradores estrangeiros pagam em cash, enquanto o governo usa Títulos da Dívida Agrária (TDAs) quando desapropria uma área conta o presidente do Incra. Além de dinheiro em espécie, os estrangeiros aparecem com moedas mais fortes, como o euro e o dólar e, em muitas regiões, quando não encontram terra barata, aumentam a oferta. (...)


Clique aqui para ler algumas coisas que escrevi sobre a mistificação patrocinada por Lula quando diz que o Brasil tem terras sobrando para a cana do etanol. A começar de Governo vegetariano e terras finitas, de abril. Nada a acrescentar. Apenas a lamentar.

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sexta-feira, 6 de abril de 2007

Governo vegetariano e terras finitas - ATUALIZADO (06/04)

Saiu hoje a segunda parte do relatório do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC, em inglês). É apocalíptico. Clique aqui para ler sobre. Aproveito o gancho para voltar ao debate sobre o etanol. Fidel Castro tem batido duro no plano Brasil-Estados Unidos de universalização do álcool etílico como alternativa aos combustíveis fósseis. O editor deste blog tem dúvidas parecidas com as de Fidel (no final deste post, links para posts anteriores sobre o etanol). Clique aqui para ler artigo do presidente cubano sobre o assunto. Para enfrentar bem a discussão, falta aos militantes do etanol responder a uma dúvida central: de onde virão as terras para produzir plantas em quantidade suficiente para abastecer de álcool os mercados internacionais, na proporção desejada por George W. Bush e Luiz Inácio Lula da Silva (já que nem a velhinha de Taubaté cairia na conversa de que esse crescimento da produção virá apenas por ganhos de produtividade). Não sei se Fidel está certo no seu ponto de vista sobre o tema, mas sei que enquanto a dúvida acima não for respondida o presidente cubano estará em vantagem na polêmica. Vamos ao caso brasileiro. Nossas terras produtivas, grosso modo, distribuem-se entre: 1) áreas de proteção ambiental e reservas legais, 2) territórios indígenas, 3) lavoura e 4) pecuária. O governo afirma que a expansão da área plantada de cana de açúcar vai se dar preservando os itens 1 e 2. Sobrariam então terras em que hoje se planta ou se cria gado. Mas o governo diz também que as áreas destinadas à produção de alimentos tampouco serão afetadas, "apenas os pastos". Pelo visto, o governo brasileiro aderiu ao vegetarianismo, pois não considera a carne um alimento. Vejam como o argumento governamental não pára de pé. Suponha que a cana de açúcar para a produção de etanol avance nas áreas de pastagens e de grãos. Qual será a conseqüência imediata? Queda de produção de carne e grãos. Mas o Brasil é um campeão mundial na produção de carne e grãos. Hoje, o The New York Times traz reportagem sobre a pressão de demanda chinesa pela soja brasileira. Demanda em alta e produção em baixa significam aumento de preços. E preços de commodities em alta significam estímulo à produção. Ou seja, se a expansão da cana se der à custa de pastos e plantações de grãos, as vacas, os bois e a soja serão empurrados para onde existir terra disponível. Para as áreas de proteção ambiental, para as reservas legais e para as terras indígenas. Claro que você pode discordar. Você pode achar, por exemplo, que o agronegócio deixará de lado os rentáveis boi e soja em nome do combate ao aquecimento global. E uma dúvida final, exposta em posts anteriores: se há terras de baixa produtividade disponíveis para a cana, por que o governo diz que faltam terras para fazer a reforma agrária?

ATUALIZAÇÃO (09/04, 18h11) - Coloquei na seção Textos de outros o interessantíssimo How Biofuels Could Starve the Poor, de C. Ford Runge e Benjamin Senauer, publicado na revista Foreign Affairs, edição de maio/junho de 2007. Parece-me um texto bem fundamentado sobre o caráter ficcional de que se reveste a idéia de uma "revolução sem custos" no biocombustível. Leia e veja por que Fidel está em vantagem no debate.

Posts anteriores:

Uma dúvida sobre o álcool e a reforma agrária

Duas medidas simples, para evitar as más companhias

Que antiamericanismo?

Álcool, reforma agrária e meio ambiente

As crianças estão brincando lá fora


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sexta-feira, 8 de junho de 2007

As almas penadas e a realidade (08/06)

Da BBC Brasil, reproduzido pelo UOL:

Um estudo divulgado pela FAO - o órgão das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação - nesta quinta-feira sugere que a crescente demanda por biocombustíveis pode estar levando a uma alta dos preços internacionais de alguns alimentos. Segundo o estudo, os gastos globais com a importação de alimentos devem crescer 5% e atingir um valor recorde de US$ 400 bilhões neste ano. A alta é puxada pelos preços de importação de grãos e óleos vegetais, usados em grande escala na produção de biocombustíveis - sobretudo nos derivados de milho. Ainda de acordo com a FAO, o aumento dos gastos com as importações desses produtos em 2007 chegará a 13% em relação a 2006. "Observando esse dado vemos claramente que a demanda por biocombustíveis é o maior responsável pela subida dos preços (dos alimentos), apesar de ser impossível dizer exatamente qual a porcentagem de culpa atribuída a esse fator", afirmou à BBC Brasil Abdolreza Abbassian, um dos autores do estudo. (Continua...)

Escrevi aqui faz dois meses o post Governo vegetariano e terras finitas. Destaco um trecho:

(...) falta aos militantes do etanol responder a uma dúvida central: de onde virão as terras para produzir plantas em quantidade suficiente para abastecer de álcool os mercados internacionais, na proporção desejada por George W. Bush e Luiz Inácio Lula da Silva (...). Vamos ao caso brasileiro. Nossas terras produtivas, grosso modo, distribuem-se entre: 1) áreas de proteção ambiental e reservas legais, 2) territórios indígenas, 3) lavoura e 4) pecuária. O governo afirma que a expansão da área plantada de cana de açúcar vai se dar preservando os itens 1 e 2. Sobrariam então terras em que hoje se planta ou se cria gado. Mas o governo diz também que as áreas destinadas à produção de alimentos tampouco serão afetadas, "apenas os pastos". Pelo visto, o governo brasileiro aderiu ao vegetarianismo, pois não considera a carne um alimento. Vejam como o argumento governamental não pára de pé. Suponha que a cana de açúcar para a produção de etanol avance nas áreas de pastagens e de grãos. Qual será a conseqüência imediata? Queda de produção de carne e grãos. Mas o Brasil é um campeão mundial na produção de carne e grãos. Hoje, o The New York Times traz reportagem sobre a pressão de demanda chinesa pela soja brasileira. Demanda em alta e produção em baixa significam aumento de preços. E preços de commodities em alta significam estímulo à produção. Ou seja, se a expansão da cana se der à custa de pastos e plantações de grãos, as vacas, os bois e a soja serão empurrados para onde existir terra disponível. Para as áreas de proteção ambiental, para as reservas legais e para as terras indígenas. Claro que você pode discordar. Você pode achar, por exemplo, que o agronegócio deixará de lado os rentáveis boi e soja em nome do combate ao aquecimento global. E uma dúvida final, exposta em posts anteriores: se há terras de baixa produtividade disponíveis para a cana, por que o governo diz que faltam terras para fazer a reforma agrária?

Recebi nos últimos dias críticas ao tom de "campanha" com que supostamente abordo certos temas. É possível que alguns posts tenham mesmo tal característica. A crítica aparece principalmente quando insisto no método de fazer perguntas à exaustão. No caso da maioridade penal, por exemplo, considero que não está satisfatoriamente esclarecida minha dúvida sobre por que o jovem de dezoito anos e um dia que cometeu crime hediondo deve ser atirado no sistema penitenciário se outro jovem apenas dois dias mais novo pode cometer o mesmo crime e não ser acusado de nada. Assim como no caso da RCTV venezuelana: se é o governo quem dá a concessão da exploração da tevê aberta, por que o mesmo governo não deveria ter o direito de não renová-la, dentro da lei? O mesmo se dá no caso do etanol e da reforma agrária: como é que está sobrando terra para o etanol brasileiro se está faltando terra para a reforma agrária? Perguntas não respondidas são como almas penadas, que vagam por aí sem encontrar repouso. Mas as perguntas e dúvidas na esfera intelectual não precisam de uma resposta necessariamente também intelectual. Muitas vezes é a realidade que vem em socorro dessas almas. Como agora no caso dos biocombustíveis. Sua excelência, a realidade, indica que a expansão das culturas destinadas aos biocombustíveis combinada à demanda crescente por commodities agrícolas pressiona para cima o preço da comida no mundo. E meu palpite é que quanto mais cara estiver a comida mais estímulo haverá para que novas áreas sejam ocupadas para plantar grãos e criar gado. Ou seja, mais desmatamento. Ou então, mais pobreza, ainda que combinada com mais riqueza.

Clique aqui para ler Food import bills reach a record high partly on soaring demand for biofuels.

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domingo, 17 de janeiro de 2010

O papel e a vida real (17/01)

O governo Lula poderia produzir políticas práticas que atenuassem a contradição entre a propriedade e a justiça social. Prefere fabricar discursos e documentos para excitar a plateia. E também confusões desnecessárias

Um capítulo polêmico do Programa Nacional de Direitos Humanos é o relativo ao direito de propriedade. O PNDH propõe criar instâncias de arbitragem antes de a Justiça poder dar liminares para reintegração de posse. Valeria em imóveis rurais e urbanos. A proposta provocou reações duras, como era previsível.

Em benefício dos redatores do PNDH, recorde-se que a Constituição trata a função social da propriedade no capítulo dos direitos individuais e coletivos. É o inciso 23 do artigo 5º: “A propriedade atenderá a sua função social”. Entretanto, como em outras passagens da Carta, aqui vai uma no cravo e outra na ferradura. O inciso anterior também é cristalino: “É garantido o direito de propriedade”.

A Constituição joga uma boia para cada lado. As entidades de proprietários rurais e seus apoiadores agarram-se no inciso 22, enquanto os movimentos sociais e seus simpatizantes se escoram no 23. E há corolários. Um lado diz que subordinar decisões judiciais a mecanismos preliminares obrigatórios de mediação feriria o direito essencial de recorrer à Justiça. O outro defende que não se trata de tolher um direito, mas regulamentá-lo.

E segue o debate. Vai ser bom se vier à superfície na campanha eleitoral. O eleitor que decida, resguardando sempre a palavra definitiva do Supremo Tribunal Federal (STF). Maiorias políticas eventuais, de um lado ou de outro, não têm força para desconstruir a Constituição. Ela não lhes dá tal poder. Quem quer uma mudança radical no ordenamento jurídico precisa seguir outro caminho: lutar por uma Assembleia Constituinte com amplas atribuições, algo só possível com ruptura institucional.

Por enquanto, o confronto é essencialmente doutrinário, abstrato. Até porque, ao descer para a vida real, para as ações de governo, nota-se o contraste entre o que é implícito no PNDH e as diretrizes da administração Luiz Inácio Lula da Silva. Enquanto o papel cultua a luta pela reforma agrária e o combate ao latifúndio capitalista, a realidade do governo do PT ruma no sentido contrário.

Converse com nove entre 10 petistas do poder e eles dirão que a reforma agrária deixou de fazer sentido econômico, diante da nova realidade no campo. Defenderão que a modernização do velho latifúndio tornou obsoleta a proposta de dividi-lo em áreas menores e entregá-las a novos proprietários; que isso hoje não seria sinônimo de progresso econômico e social, mas de regressão. Como, porém, a coisa não pode ser dita assim, a seco, dados os custos políticos decorrentes da narrativa pregressa, tudo fica “em off”.

Quantas vezes você ouviu dos atuais governantes, a começar pelo presidente da República, que o esforço principal deve ser melhorar os assentamentos, em vez de ampliar o número deles? E o discurso tem ido além: os usineiros do açúcar e do álcool tiveram o prazer de receber de Lula a medalha verbal de “heróis”. Aliás, a principal iniciativa deste governo no campo é a parceria com a monocultura canavieira, base do prussiano e utópico projeto de transformar o etanol num biocombustível planetário.

Na reforma agrária, a coragem do governo Lula só aparece no papel. Antes de assinar o decreto do PNDH, Lula poderia ter atualizado os índices mínimos de produtividade para um empreendimento agrário ver cumprida a função social. Os números estão defasados em três décadas. Não fez. Poderia ainda ter acelerado as desapropriações, já que segundo sua excelência existe muita terra improdutiva sobrando no Brasil, e por isso a ampliação da área plantada com cana não vai ameaçar a produção de alimentos. Mas os “pastos degradados” continuam intocados.

Sobre o direito de propriedade propriamente dito, a experiência histórica mostra ser essencial algum grau de segurança jurídica para que o agricultor invista e busque progredir na atividade. O desafio é como combinar a desejada justiça social. O governo Lula poderia produzir políticas práticas que atenuassem a contradição. Prefere fabricar discursos e documentos para excitar a plateia. E também confusões desnecessárias.

Coluna (Nas entrelinhas) publicada neste domingo (17) no Correio Braziliense.

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segunda-feira, 28 de abril de 2008

Fome de comida e de argumentos (28/04)

A crise nos alimentos, com a elevação global do preço da comida, pegou de supresa os políticos adeptos do agronegócio, seus ideólogos na universidade e seus muitos amigos na imprensa. Como descrevi em Dá para criar gado no pré-sal?, a reação tem sido descoordenada. Catam-se os argumentos mais à mão e tenta-se vencer o debate pela imposição de um consenso artificial. O presidente da República, por exemplo, aproveitou a crise para sacar do bolso do colete a crítica contra os subsídios que os países ricos dão a seus agricultores. Criticar os subsídios europeus e americanos dá ibope no mundo em desenvolvimento, ainda mais porque o mecanismo revela o caráter limitado e cínico da pregação liberal. Mas, infelizmente para Lula e auxiliares como o ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, os subsídios do Primeiro Mundo não explicam a alta planetária dos preços da comida. Por uma razão simples. Subsídio é dinheiro que o governo de um país tira do Tesouro e repassa ao agricultor para que este possa colocar seu produto no mercado a preços mais baixos, e mesmo assim consiga cobrir os custos e ter lucro. Ou seja, o subsídio é um mecanismo que contém os preços da comida para o consumidor. Há um argumento para combater esse ponto. Se os países em desenvolvimento pudessem ter acesso livre ao mercado europeu e norte-americano, teoricamente a oferta cresceria para atender à maior demanda. Isso seria verdade como solução para os problemas atuais se o impasse mundial estivesse na falta de demanda (por comida) fora da Europa e dos Estados Unidos. Ou seja, se vivêssemos num mundo em que países pobres não conseguissem desenvolver a sua agricultura por falta de mercado. Mas não foi o próprio Lula quem admitiu que a inflação se deve em primeiro lugar ao excesso de demanda? Não disse o presidente que o fator a pressionar os preços dos alimentos são os milhões de chineses, indianos e latino-americanos que finalmente passaram a comer? Então, por que diabos os agricultores do mundo em desenvolvimento não crescem sua produção de modo a atender à demanda de seus irmãos da China, da Índia e da América do Sul? No final do texto voltaremos a esse ponto essencial. Outro argumento é que a fome na periferia se deve à falta de renda, e não de comida. E que o biocombustível traria renda a quem não a tem. Caímos no caso anterior. Se a oferta mundial não atende à demanda é porque falta produto, não consumidores dispostos a comprá-lo. Se a cultura de plantas para produzir biocombustível propiciar a elevação da renda nas populações pobres da África (o que é uma miragem, mas partamos da premissa de que será assim), a demanda crescerá ainda mais. E se não houver o crescimento da oferta de comida o problema se agravará. Também afirma-se que a elevação dos preços do petróleo pressiona o custo dos fertlizantes e que isso tem implicações no preço final dos alimentos. Se é verdade, trata-se então de produzir mais petróleo. Alguém poderá dizer que a substituição por biocombustível talvez fizesse "sobrar" mais petróleo para produzir fertilizantes. Sem fazer contas é difícil discutir. Até porque também é necessário fertilizante para plantar cana-de-açúcar, milho e outras matérias-primas do álcool combustível. O que neutralizaria a tese. Argumento vai, argumento vem, percebe-se que o desafio é um só: produzir mais comida. Produzir muito mais comida do que se produz hoje. No que a produção de biocombustíveis pode ajudar nessa tarefa? Na melhor das hipóteses, em nada. O Estado de S.Paulo publicou neste domingo um belo conjunto de reportagens. Clique aqui para ler. Um trecho:

O Brasil é hoje o único país que tem potencial para resolver no curto prazo a crise mundial de alimentos. O País pode incorporar aos 47 milhões de hectares usados para produzir comida 50 milhões de hectares de pastagens subaproveitadas e com aptidão para agricultura de grãos. Com isso, é possível dobrar a área com grãos e ampliar em duas vezes e meia o volume da safra de alimentos, atingindo 350 milhões de grãos, sem derrubar uma única árvore, segundo projeções do ex-ministro da Agricultura e presidente do Conselho do Agronegócio da Federação da Agricultura do Estado de São Paulo (Fiesp), Roberto Rodrigues. Nessa conta, ele considera o crescimento da safra não apenas pela expansão da área, mas também pelo aumento da produtividade, que, segundo ele, na média das lavouras brasileiras, é baixa.

Aí está. O problema a ser enfrentado é a baixa produtividade média da agricultura brasileira. E não há como fazê-lo sem atacar a concentração da propriedade fundiária. Trata-se de uma questão clássica das revoluções burguesas. O que diz o ex-ministro da Agricultura, Roberto Rodrigues? Que o Brasil tem de "pastagens subaproveitadas e com aptidão para agricultura de grãos" uma extensão de terras maior do que a atualmente utilizada "para produzir comida". Outro trecho das reportagens do Estadão de domingo ajuda a entender melhor o problema:

Guilherme Cassel [ministro do Desenvolvimento Agrário] diz que hoje a agricultura familiar é responsável por 70% de todo o alimento que o brasileiro consome. Arnoldo Campos, secretário de Agricultura Familiar do Ministério do Desenvolvimento Agrário, fornece os dados: feijão, 70%; mandioca, mais de 90%; leite, mais de 50%; aves e suínos, mais de 60%; trigo, mais de 50%; hortigranjeiros, mais de 90%. “A agricultura empresarial é responsável por quase 70% da produção de bovinos, arroz e soja; e 51% do milho, além de predominância quase total na cana-de-açúcar.”

Infelizmente, Lula e o PT abandonaram o programa agrário democrático como saída para aumentar a produtividade no campo. Recusam-se, por exemplo, a atualizar os índices de produtividade para acelerar a reforma agrária. O assunto foi perguntado ao presidente da República na entrevista que o Correio Braziliense publicou ontem:

CB - O senhor tem dito que o biocombustível e a cana-de-açúcar não pressionam a produção de alimento porque o Brasil tem muita terra, especialmente pastos degradados que poderiam ser utilizados. Se está sobrando terra para plantar cana, por que está faltando para a reforma agrária?

Lula - Não está faltando terra para a reforma agrária. No governo passado, em oito anos, eles distribuíram 22 milhões de hectares de terra. Nós, em cinco anos, distribuímos 35 milhões de hectares de terra. Qual é a divergência que tenho com o movimento dos sem-terra? É que acho que o problema não é assentar mais gente. O problema é fazer as pessoas que já estão na terra se tornarem mais produtivas. O que não pode é ficar colocando gente num canto, e eles continuarem tão miseráveis quanto estavam ontem. Precisamos aperfeiçoar a produtividade, a assistência técnica, o equilíbrio dos preços para quem já tem terra. Desse drama eu não sofro. O dado concreto é que estamos vivendo um bom desafio, e o Brasil não pode ter medo do bom desafio. O ruim seria se o mundo estivesse precisando de alimento e o Brasil não tivesse terra, tecnologia e conhecimento.

Está claro que para o nosso presidente hoje em dia produtivo mesmo é o latifúndio capitalista modernizado. Já Roberto Rodrigues, um latifundiário e líder de latifundiários, admite a baixa produtividade média dos campos brasileiros. A tragédia é que os adversários de ontem dos latifundiários hoje se tornaram seus melhores aliados e porta-vozes. Não vou me meter a discutir aqui o porquê, mas é fato. Dos muitos e muitos discursos que o presidente da República fez ao longo de cinco anos e meio de mandato, quantos foram dedicados à necessidade de aumentar a produção de comida? Basta comparar com o volume de pronunciamentos em defesa do biocombustível. Quais são os programas de governo destinados a implementar a expansão racional da fronteira agrícola com base na agricultura familiar? Qual é a prioridade dada à infra-estrutura para estocagem e escoamento da produção agrícola, especialmente para garantir renda ao pequeno e médio agricultor, para que este não fique à mercê do capitalista do agronegócio? A verdade é que o Brasil foi pego de calças curtas pela crise. E o Brasil é elemento-chave para a solução dela. Mas para isso precisaria iniciar internamente uma verdadeira revolução agrária. Uma necessidade no Brasil, no resto da América Latina e na África. Revolução para a qual faltam ainda as idéias, os líderes e a organização da energia social indispensável para quebrar a hegemonia secular do latifúndio. Se até Lula, o mais forte líder político da esquerda mundial, vai a África (como recentemente em Gana) para vender não a democratização da propriedade territorial, mas a modernização do latifúndio, pode-se deduzir o tamanho do problema.

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quarta-feira, 10 de março de 2010

Cotas, passado e futuro (10/03)

Nossa Independência não aboliu a escravidão, e o fim desta não trouxe a reforma agrária. Não se deram aos negros libertos meios para avançarem ainda mais na busca de cidadania. As cotas raciais são uma proposta — pode haver outras melhores — para fazer agora o que não foi feito antes

No meio da discussão das cotas para negros em universidades públicas, debate-se o papel das relações escravistas africanas “endógenas” na formação do mercado ocidental de escravos, na América Colonial. Historicamente é um aspecto bem conhecido e resolvido, apesar dos impulsos revisionistas. O tráfico de negros da África para o Ocidente construiu-se sobre alicerces de uma arquitetura social e econômica ali preexistente, escravagista. O colonialismo não a criou. Integrou-a, subordinou-a.

Mas o que isso tem a ver com o debate das cotas raciais nas universidades, objeto da audiência pública no Supremo Tribunal Federal (STF) em que a polêmica político-jornalístico-acadêmica começou a germinar? Rigorosamente nada. As cotas não respondem a uma suposta necessidade de reparação histórica, nem têm aí um mecanismo legitimador objetivo. Elas são apenas um meio de acelerar a oferta equilibrada das oportunidades num país desigual demais.

As consequências serão realmente impressionantes se formos discutir as ações afirmativas com base em dívidas ancestrais, reais ou alegadas. Infelizmente, pode acontecer. Será mais uma deformação no nosso debate político, mais uma cria da fértil coabitação do multiculturalismo com o oportunismo.

Pelo critério da reparação, a compensação razoável aos povos originais deveria então incluir a completa devolução das terras brasileiras aos descendentes dos índios que aqui viviam quando os portugueses desembarcaram no século 16. E chegaríamos a um beco sem saída. Além dos índios, há outros oprimidos a reivindicar terras. Como atender uns e não atender outros?

Tem havido nos últimos anos uma notável expansão das áreas catalogadas como antigos quilombos. Mas, se os índios têm direito a tudo que foi tirado dos ancestrais deles, como fica o direito dos demais grupos também “de baixo”? Como resolver isso? Com base em laudos antropológicos? Mas por que critérios? Ou seria melhor convocar historiadores? Mas de que correntes de pensamento? Bem, se não der de outro jeito, que tal no braço?

Discutir reivindicações econômicas ou territoriais com base na contabilidade de débitos históricos é uma aberração que leva a caminhos perigosos. No Oriente Médio, a arqueologia, entrelaçada com a religião, tem sido ferramenta habitual na disputa para definir de quem deve ser tal ou qual pedaço de chão.

O sujeito encontra um fragmento de vaso, um pedaço do que seria um candelabro, ou lê um trecho do livro que elegeu como verdade absoluta e pronto: está aberto o caminho para o lunático pedir a remoção de populações e mesmo a eliminação de países inteiros.

Fazer política com base na História, vista como certificadora em última instância, mais ainda quando isso se dá a partir de critérios de “culpa” e de “direitos originais”, nunca acaba bem. Pelo menos eu não conheço caso em que tenha acabado bem. Você conhece?

Até por não ter visto ainda uma proposta melhor, sou favorável às cotas raciais, com alguns critérios. Como garantir que o candidato é mesmo negro? Por mim, basta que ele se declare negro. Eventuais fraudadores teriam que arcar com o custo social da sua fraude. Seria mais do que suficiente.

Ao julgar o assunto, penso que o STF deveria proibir a tentativa bizarra de instituir supostos critérios “objetivos” para o estudante obter o “atestado de negro”. Assim como deveria vetar os critérios subjetivos, tão odiosos quanto, por embutirem a possibilidade real de discriminação político-ideológica.

Feita a ressalva, defendo que as cotas para negros nas universidades públicas sejam limitadas no tempo, adicionais e declinantes. A provisoriedade é autoexplicativa, pois o objetivo delas é extinguir-se. Adicionais, porque em vez de separar vagas já existentes o Estado deveria criar novas. E declinantes, ainda que a uma taxa suave, para garantir a provisoriedade.

O Brasil fez sua Independência sem abolir a escravidão, e quando acabou com ela não fez a reforma agrária, não deu aos negros libertos meios para avançarem ainda mais na busca de cidadania. As cotas raciais são uma proposta — pode haver outras melhores — para fazer agora o que não foi feito antes. Não para reescrever o passado, mas para construir um futuro diferente.

Coluna (Nas entrelinhas) publicada nesta quarta (10) no Correio Braziliense.

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sexta-feira, 20 de abril de 2007

Forte com os fracos (20/04)

De volta de viagem, escrevo sobre assunto de ontem. Chamou a atenção a dureza das palavras do ministro do Desenvolvimento Agrário contra o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Segundo a Agência Brasil:

O ministro do Desenvolvimento Agrário (MDA), Guilherme Cassel, disse hoje (19) que a sociedade brasileira está ficando “cansada da retórica vazia” do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST). (...) “Não só eu, mas toda a sociedade brasileira está ficando um pouco cansada dessa retórica vazia, que sempre vira as costas para a realidade, para justificar os seus atos. (...) Isso [as críticas do MST ao governo] é retórica e retórica vazia para justificar ações políticas que são, às vezes, inexplicáveis”, completou. Na nota divulgada, o MST afirma que “nos últimos anos, pouco ou nada foi feito para uma verdadeira reforma agrária". (...)

Clique aqui para ler a íntegra da reportagem
. Eu estranho o tom das críticas do ministro (autonomeado representante "de toda a sociedade brasileira") contra o MST, em decorrência de posições políticas assumidas pelo movimento. Afinal, sabemos todos -sabe em primeiro lugar o próprio ministro- que movimentos sociais saudáveis são assim mesmo: por mais que o governo faça (e nem se pode dizer que o governo federal seja um sucesso na reforma agrária -ao contrário), sempre vão querer mais. Aliás, o país estaria mais bem servido se o movimento sindical brasileiro mantivesse, nos dias que correm, 10% da combatividade do MST. Para dizer as coisas como devem ser ditas, as palavras do ministro Cassel ficariam melhor na boca do representante de um governo de latifundários. O mais chocante, porém, é comparar o tratamento verbal dado ao MST com aquele dedicado aos controladores de vôo, que protagonizaram coisa bem mais grave do que a invasão temporária de meia dúzia de prédios públicos e um punhado de discursos radicais. Recorde-se que os sargentos-controladores levaram ao colapso o tráfego aéreo nacional após uma rebelião militar. Nem assim deixaram de ser tratados com doçura pelo ministro da Defesa, que invariavelmente faz questão de destacar a "legitimidade" das reivindicações dos sargentos. Olha aí uma idéia. Por que Luiz Inácio Lula da Silva não põe o titular do Desenvolvimento Agrário na Defesa e o da Defesa no Desenvolvimento Agrário? Pelos discursos recentes, seria mais adequado. Eu não tenho dúvida de que Waldir Pires trataria o MST com mais respeito (e você sabem o tanto que o ministro da Defesa apanhou aqui por causa de sua posição na crise aérea). Mas estou sinceramente curioso para saber se o ministro Cassel exibiria, diante dos sargentos-controladores de vôo e dos comandantes militares, a mesma valentia verbal que despejou nesta semana sobre os trabalhadores sem-terra.

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